Monday, July 18, 2011

Extrema direita é anti-semita em Genebra, Suíça

Um grupo de extrema direita suíço, auto-intitulado Genebra Não Conforme (GNC), publicou na internet uma imagem, datada de 17 de junho último, de um homem com o corpo perfurado por uma flecha. Esse personagem usa uma kipa, peiot et a bandeira de Israel no corpo e a imagem é acompanhada de um slogan que diz "1º de Agosto: Salve a Suíça, vise certo". O dia 1º de agosto é a data nacional suíça.

Logicamente o GNC diz que não se trata de anti-semitismo nem de ataque aos judeus e argumenta que o personagem "representa o extremismo israelense (o sionismo) e a política de Israel que comete crimes contra os palestinos e contra aqueles que os ajudam". No entanto, como observa o advogado Jean-Pierre Garbade, não há dúvida de que são bem os judeus o alvo do poster, pois o texto "Salve a Suíça" nada mais é do que a retomada de slogans da Segunda Guerra Mundial que acusavam os judeus de representar um perigo. Apesar do poster mostrar uma bandeira de Israel, a população suíça sabe que esse país não representa uma ameaça para a Suíça. Portanto, não há dúvida de que o cartaz traz uma mensagem anti-semita. Pela voz de seu presidente, Johanne Gurfinkiel, a Coordenação Inter-comunitária contra o Anti-semitismo e a Difamação (CICAD) se insurge contra tal ato do GNC e deverá processar judicialmente os autores do cartaz.

A história do anti-semitismo teve seu capítulo genebrino, como menciono em meu livro O Código David:

"Efetivamente a história da minha querida Genebra não foi exceção. Em 1428 os judeus são agrupados em um gueto no Grand Mezel, uma praça que ainda tem esse nome, junto à rua des Granges. O espaço era minúsculo, as entradas e saídas eram controladas, não havia praticamente perspectivas de trabalho e os judeus deviam usar um sinal distintivo nas roupas, uma pequena roda vermelha e branca. Ainda assim, foram expulsos em 1490, ou seja, dois anos antes da expulsão da Espanha, tendo prevalecido a interdição de residência em Genebra para os judeus por três séculos. Mas é a mesma cidade da Academia de Calvino. É isso o que nos incita a refletir sobre o perigo da democracia cuja legitimidade é proclamada por governos que usam a maioria nas eleições e plebiscitos como forma de excluir as minorias, o respeito pela diversidade. Infelizmente é o que ocorre hoje em vários países, inclusive na América Latina e na Europa. E o fazem com base em um conceito errôneo da democracia. ..." 

Esse alerta sobre os perigos da democracia desvirtuada é válido para todos aqueles grupos políticos que acreditam que podem tudo no jogo da conquista do poder, mesmo de parte do poder. E como ilustrado acima, nenhum país está ao abrigo dessas aberrações, nem mesmo os mais desenvolvidos econômica e socialmente. Felizmente que os suíços não são anti-semitas. Mas sempre haverá anti-semitas suíços. Assim como brasileiros e de todas as nacionalidades. Pense nisso e manifeste-se sempre que puder. 


Sunday, July 17, 2011

Como fazer a cobertura jornalística de conflitos?

Apesar das tecnologias modernas digitais, fiz uma assinatura do The Jerusalem Report impresso. Ainda acho mais fácil ler artigos impressos, principalmente quando procuro análises mais profundas dos assuntos que me interessam. Na edição de 20 de junho me deparei com uma matéria escrita pela professora Ilene Prusher. O seu curso, de duração de um semestre, intitulado "Reporting Conflict" é oferecido a alunos de jornalismo americanos pelas Universidades de Nova York (NYU) e de Tel Aviv. O artigo me pareceu extremamente interessante e atual à luz da evidente parcialidade e seletividade com que os jornais brasileiros -juntando-se assim a muitos no exterior- cobrem o conflito israelo-palestino. O curso não visa unicamente a esse conflito, mas trata igualmente dos conflitos no Iraque, no Afeganistão e nos países que vivem a "primavera árabe". Há algo ainda mais fundamental no artigo: o fato de que muitos dos estudantes em jornalismo irão "blogar" durante anos antes de encontrarem um trabalho em um jornal ou revista, incluindo nas mídias eletrônicas e que um bom direcionamento ou uma perspectiva apimentada é mais atraente do que um jornalismo sólido, boas fontes e um texto equilibrado. Para o próximo semestre a professora Prusher vai propor um novo exercício a seus alunos: ir a campo e escrever uma matéria que sustente a posição contrária à do aluno que, como eu disse acima, tem suas ideais pré-concebidas.

Não sei se os cursos de jornalismo no Brasil têm algo parecido, visando a formar jornalistas para a cobertura de conflitos. Imagino que isso deveria ser, se ainda não o é, parte obrigatória desses currículos. E aqui não penso apenas nos conflitos do oriente médio, mas em todos os conflitos, inclusive nos nossos nacionais. Mas tenho uma outra sugestão ainda: por que, no mundo atual, sem fronteiras na mídia, não formamos nossos jornalistas cada vez mais em intercâmbio, presencial ou à distância, com alunos de outros países? Certamente seria muito interessante que uns conhecessem as bases, preconceitos e outros elementos determinantes do jornalismo dos outros.  

Segundo a professora Prusher, seu trabalho consiste em chacoalhar as conclusões pré-concebidas de seus alunos e abrir-lhes os olhos para as nuances na região, sobretudo ensinando-lhes como fazer reportagens honestas e imparciais. Parte das atividades propostas consiste em trabalhos práticos de campo.  

Novo Blog para os Amantes do Basketball

Para os amantes do basketball há um novo blog que, por razões mais que óbvias, eu recomendo. Eu o acrescentei na minha lista de links apenas iniciada. Se o meu blog ainda precisa de muitas melhorias e correções, o blog Double Basketball já nasce com alta qualidade de forma e conteúdo. 

Eu não era seguidor nem fã de basketball até meu filho começar a praticá-lo. Então descobri o quanto é desafiador e excelente tanto para o desenvolvimento físico e a coordenação motora das crianças como para o desenvolvimento de várias outras habilidades. Trata-se de um esporte intelectualmente exigente pois não é fácil assimilar todas as regras, entender e apreender o posicionamento em quadra, a antecipação, o tempo, o conjunto e a construção das jogadas em equipe. Por isso, mesmo não sendo este meu blog dedicado ao esporte, achei que havia uma combinação perfeita com o Double Basketball, razão pela qual posso recomendá-lo a meus seguidores.

Saturday, July 16, 2011

Parashá de Shavuot

Ontem eu recebi a visita de um cliente novo. Ele chegou dizendo “Estamos a apenas algumas horas do início do 2º Ticun da Virada. Portanto, estamos em plena celebração da festa de Shavuot, festa em que comemoramos a entrega da Torá. Mas o que significa “entrega da Torá? Isso é um bom negócio? Quais os riscos e benefícios?” E assim por diante, fui bombardeado com perguntas. Em determinado momento eu disse a ele que a cada pergunta o potencial de meus honorários estava aumentando significativamente e que, por essa razão, era melhor avançarmos calmamente, por partes, como recomendaria Jack. Logo ficou claro que aquele Ticun ia tomar feições de Lernen de Shavuot.

Curiosamente os cursos de direito não tratam especificamente da entrega da Torá, de maneira que tive que começar do básico. Por exemplo, eu disse a ele que, se fossemos considerar a questão sob a ótica do direito brasileiro, cabia em primeiro lugar examinar se a entrega da Torá era um negócio jurídico válido. Para tanto, expliquei-lhe, seria necessário, por força do art. 104 do Código Civil, que três condições estivessem preenchidas, a saber que houvesse agente capaz, que o objeto fosse lícito, possível, determinado ou determinável e que a forma fosse prescrita ou não defesa em lei. É certo que uma das partes é por definição plenamente capaz, pois não ocorreria a ninguém, e muito menos seria isso admissível no mérito ante qualquer Juízo, ter Adonai por menos que plenamente capaz. Já a outra parte, .... Quem é a outra parte? - indaguei. Ele me disse que pelo que sabia era o povo de Israel, do qual fazia parte, mas que ninguém o havia consultado.

Pesquisando em minha biblioteca pessoal, encontrei comentário pertinente de Alexandre Safran, filho e discípulo de Rabbi Bezalel Zeev Safran, ao qual sucedeu como rabino, tendo sido eleito aos 29 anos grande rabino da Romênia e nomeado grande rabino de Genebra em 1948. Nesse comentário está explicado que nossos textos litúrgicos mencionam que em Shavuot a Torá nos foi ofertada. Não é dito que é quando a recebemos, e que como observa Rabbi Menahem Mendel de Kotsk, cada um de nós a recebe separada e pessoalmente.

Nesse caso surgem várias questões, que tentarei apenas resumir aqui, em razão do pouco tempo à disposição. Em primeiro lugar, como se manifestou a vontade de realizar o negócio? O Código Civil dispõe, em seu art. 107, que a validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir. Ora, se a vontade refere-se justamente à recepção da lei, infere-se que a declaração de vontade é válida independentemente da sua forma, pois ainda não havia sido regulamentada eventual forma para a declaração de vontade. Mas será que o negócio jurídico a ser celebrado requer instrumento público e, na afirmativa, seria a Torá esse instrumento? Ainda mais complexa é a questão de saber se o silêncio de meu cliente, na espécie, pode ser tido por anuência, porquanto a disposição do art. 111 do Código Civil reza literalmente que “O silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária a declaração de vontade expressa”. Ora, nas circunstâncias não seria esse silêncio suficiente? Mas o próprio conceito de silêncio não é definido na lei.

Contudo, no caso que nos ocupa, por se tratar do recebimento da Torá, há uma inversão paradoxal. O silêncio constitui manifestação não de anuência, mas de recusa. É que o Talmud (Avoda Zara, 19, a) esclarece que a Torá que o israelita recebe e adota, que ele cultiva, torna-se sua Torá. Deus lhe cede a Torá. Deve-se considerar como se o homem a tivesse feito. Diz ainda o Talmud (Sanhédrin 99, a, e Tanhuma, ad Tavo, 3) que aquele que aplica a Torá e a realiza verdadeiramente tem o direito de estimar que ele mesmo a redigiu e promulgou no monte Sinai. Portanto, a melhor doutrina ampara o entendimento de que a entrega da Torá, como negócio jurídico autônomo, não se aperfeiçoou no Sinai, senão que depende da tradição, ou seja da entrega efetiva, a qual não pode existir sem o outro a quem entregar nem sem a recepção efetiva da Torá. É que “entrega” implica per se que alguém esteja presente para receber. Não havendo essa presença, existe apenas oferta da Torá. Para explicar melhor, aproximando de situação atual, nossos tribunais já se pronunciaram no sentido de que a transferência da propriedade das coisas, por exemplo de um carro, se opera pela tradição, como se depreende do art. 1.267 do Código Civil que prevê, textualmente, que “a propriedade das coisas não se transfere pelos negócios jurídicos antes da tradição”, sendo que esta consiste na entrega da coisa ao adquirente, com a intenção de lhe transferir a sua propriedade.

Mas será que Adonai declarou que desejava nos transferir a propriedade da Torá? Como vimos acima, a melhor doutrina –que neste caso praticamente se confunde com a melhor jurisprudência, uma vez que aquela nada mais é do que o Talmud- entende que a intenção era efetivamente a transferência da propriedade, já que, repito, citando mais uma vez o Talmud, aquele que aplica a Torá e a realiza verdadeiramente tem o direito de estimar que ele mesmo a redigiu e promulgou no monte Sinai. Tendo em vista que a essa posição pacífica da doutrina podemos acrescentar que o art. 112 do Código Civil dispõe que “nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem”, e o art. 113 que “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”, não há necessidade, em nossa análise, de discutirmos qual a linguagem empregada por Adonai. Sua intenção era nos transferir, a cada membro do povo de Israel, a propriedade da Torá.

Essa forma de entrega da Torá, que se aperfeiçoa no seu recebimento, a cada instante em que é recebida na forma de sua aplicação por cada um, é única e afasta, de maneira original e engenhosa, o problema da representação. Imaginemos que meu cliente desejasse invocar o art. 116 a contrario, para alegar que Moisés ou seus antepassados no Sinai excederam seus poderes, pois, conforme tal dispositivo legal, a manifestação de vontade pelo representante produz efeitos em relação ao representado somente nos limites de seus poderes, sendo que estes não haviam sido definidos por meu cliente. Aliás, meu cliente se revoltou, até certo ponto com razão, com o fato de que não puderam negociar o pacto que lhes foi oferecido por Deus. Na verdade quem negociou foi Moisés, que subiu sozinho e ninguém sabe direito o que ele tramou lá em cima, sabemos apenas qual foi o resultado. Um pacto mal costurado, com muitas obrigações, condições e promessas. Expliquei-lhe que poderíamos efetivamente invalidar o negócio com base nos art. 123, 124, 138 e 139, ante a existência de algumas condições incompreensíveis e erros substanciais, que interessam à natureza do negócio.

Por outro lado, Deus se apresentou de forma tal que poder-se-ia até falar de coação, que o art. 151 reconhece como passível de viciar a declaração de vontade quando é tal que incuta fundado temor de dano iminente e considerável à pessoa, sua família ou seus bens. Alguém, nas condições descritas na Torá, não teria fundado temor vendo o monte Sinai fumegar, uma fumaça subindo e o monte estremecendo, além do aviso que quem ultrapassasse determinada posição morreria? No entanto, pode-se sustentar, do outro lado, que tais eram os usos e costumes naqueles tempos. Meu cliente pensou ainda em invocar o art. 119 para alegar a nulidade do negócio tendo em vista que “é anulável o negócio jurídico concluído pelo representante em conflito de interesses com o representado, se tal fato era ou devia ser do conhecimento de quem com aquele tratou”. Ora, Deus não podia desconhecer que tal representante, Moisés e os antepassados de meu cliente, estavam concluindo negócio conflitante com os interesses deste, pois Deus sabe o que ocorreu, ocorre e ocorrerá. Portanto, já sabia que meu cliente iria desaprovar o negócio 3321 anos mais tarde. Infelizmente já expirou o prazo de decadência para pleitear tal anulação.

Também seria possível entrarmos pela seara da desproporção das prestações, mas como o art. 157, par. 1º, diz que a desproporção das prestações deve ser apreciada segundo os valores vigentes ao tempo em que foi celebrado o negócio jurídico, teríamos problemas para fazer a prova dessa desproporção.

Como é possível ver, já quase esgotamos o tempo que tínhamos à disposição e nem tratamos ainda de saber se o objeto do negócio é lícito, possível, determinado ou determinável. Assim, vamos assumir a hipótese de que é lícito e possível entregar a Torá coletivamente mediante seu aperfeiçoamento pelo recebimento individual de cada um em cada época. Temos ainda que resolver a questão de saber se o que foi e é entregue é determinado ou determinável. É neste ponto que as chances de meu cliente são as maiores, pois, retomando literalmente (com minha tradução) as observações do grande rabino Alexandre Safran, o israelita deve, pelo menos uma vez na sua vida, receber pessoalmente a Torá e a adotar. Ele não deve se contentar da Torá que a tradição e o ensinamento de seus pais e de seus mestres colocam ao seu alcance. Ele é chamado a viver a sua própria revelação. Cada judeu tem a obrigação formal de escrever ele mesmo o seu Sefer Torá, seu Rolo da Torá, ainda que seus pais lhe deixem um, pois é dito “E agora escreva para você esse cântico”. Dessa maneira cada israelita poderá descobrir e realizar sua própria Torá, a estudar e a compreender.

Esse comprometimento individual é, portanto, o que permite definir o Sefer Torá de cada um, de maneira que o negócio jurídico chamado entrega da Torá é válido a cada instante em que cada pessoa, individualmente, a recebe, não pelo silêncio, neste caso não sinônimo de anuência, mas pelos seus atos que manifestam sua vontade de aceitar a Torá que Deus ofereceu coletivamente a Israel. Observem bem que a oferta é coletiva, para o povo, mas que a aceitação é individual, sempre, a cada instante em que cada pessoa aceita receber a Torá. Tendo em vista que a própria realidade de povo é mutável, na medida em que o número de seus integrantes muda, a Torá sempre estará sendo aceita, e para quem a aceitou, essa aceitação ocorre não de uma vez, mas a cada instante em que essa pessoa a recebe efetivamente, na sua vida, escrevendo seu próprio Sefer Torá, como expliquei acima citando o grande rabino Alexandre Safran.

Nada melhor ilustra essa aceitação que a história de Rute, pois além de ter sido primeiro moabita, ela, viúva do filho de Naomi, disse que, vejam bem, acompanharia sua sogra que decidira voltar para Judá. Isso mesmo, ela optou por acompanhar sua sogra. E disse também: “teu povo será meu povo e teu Deus será meu Deus”.

Pensando bem, acho que vou recomendar a meu cliente optar pela conciliação como meio de solução da controvérsia. (Roberto Bedrikow, Shavuot 5769)

Chol Hamoed Pessach

Para fazer esta drashá recorri a uma fonte externa, não judaica, mas nem por isso "ajudaica". Na verdade eu acho que quanto mais externas ao judaísmo as fontes, mais judaica será a drashá. Esse é um dos paradoxos do judaísmo, penso eu. Concordo que isso soa absurdo e dificilmente sustentável, mas vou explicar. Os textos, as tradições, as leis sobre as quais cabe embasar a drashá serão sempre judaicos, mas as fontes de inspiração, quanto mais abrangentes ou distintas, melhor. É o espaço entre as palavras, o não escrito em oposição ao escrito. Isso fica ainda mais evidente em Pessach. Por exemplo, temos uma ordem precisa na qual deve transcorrer o Seder, mas uma variedade de Hagadot, que, contudo, contam todas a mesma história. É isso que preserva o judaísmo ledor vador, contrariamente ao que pensam ou melhor ao que creem aqueles que se tornaram ou se tornam, a cada dia que passa, mais presos no texto e, por essa razão, mais distantes deste. Portanto, desta vez a minha fonte de inspiração foi a exposição Escher no Centro Cultural Banco do Brasil, no centro da cidade. Recomendo a todos visitá-la. Uma das obras expostas é um cartaz com figuras de pássaros que está sendo colado sobre uma parede. Então vemos parte do cartaz -a maior parte- já desenrolada e a restante sendo ainda desenrolada e colada. Mas o que é extraordinário é que na parte primeiro desenrolada, as figuras já se tornaram pássaros verdadeiros que começam a voar e sair do cartaz. Assim, vemos claramente que à medida em que o cartaz é desenrolado os pássaros vão se libertando, passando de duas dimensões e formas simples e limitadas para a vida em três dimensões em formas mais sofisticadas. Ora, a liberdade que conquistam não está no cartaz, mas na ação de desenrolá-lo, de abri-lo ao mundo externo.

Mutatis mutandis é o que acontece a cada vez que retiramos o Sefer Torá do Aron Hakodesh e o desenrolamos, até podermos ler o que procuramos. Essa ação nos torna livres. De certa forma, as letras ganham asas, passam a ter três dimensões e a adquirir vida. No entanto, há uma diferença -além de muitas outras- entre a obra de Escher e o texto da Torá. Naquela, é o seu criador, Escher, que dá liberdade à sua criação, seus pássaros. Neste, somos nós. A liberdade do texto é a nossa própria liberdade. A não liberdade do texto é a nossa escravidão. Em Pessach o que nós comemoramos não é uma liberdade que Deus teria atribuído ao texto da Torá, mas a liberdade que Ele ele nos concedeu para desenrolá-lo, trazê-lo para a criação de forma livre, se assim escolhermos fazer. Em suma, comemoramos nossa liberdade de escolhermos ser livres. Por isso, mais uma vez, o Seder e as Hagadot. Foi assim que este ano tive a maior alegria possível durante um Seder. Meu filho dizendo "papai, você não sabe. A história é assim. O certo é assim." Não há nada melhor do que o seu filho criticá-lo, mostrando que o que estávamos comemorando não eram aqueles fatos passados da libertação do nosso povo, mas o futuro, que estávamos construindo ali, no presente daquela noite de Seder. Essa é a mensagem de Pessach, a razão de estarmos aqui, eu fazendo esta drashá e vocês gentilmente escutando-me. (Roberto Bedrikow, 23/04/2011)

Dia Internacional de Recordação do Holocausto (27/01)

Sugeri ao Diretor das Faculdades Integradas Rio Branco não deixar passar em branco a data do 27 de janeiro, Dia Internacional da Recordação do Holocausto. Sem nenhuma hesitação fui autorizado a fazer uma apresentação aos professores e coordenadores dos 18 cursos então oferecidos. Procurei evitar as imagens mais chocantes, para não causar polêmicas nessa primeira oportunidade de trazer para tal ambiente acadêmico tão importante assunto. Assim, foquei na imagem das crianças, que representam o futuro, mas que não puderam torna-se nem advogados, nem professores, nem administradores, nem jornalistas, etc. A reação foi muito positiva, mostrando que consegui atingir meu objetivo em certa medida. Espero que essa semente possa fazer com que as reflexões propostas possam ser efetivamente inseridas nos programas dos cursos de graduação e nas pesquisas de pós-graduação. Agradeço aqui a Fundação de Rotarianos de São Paulo, na pessoa de seu presidente, Dr. Eduardo de Barros Pimentel, e as Faculdades Integradas Rio Branco, na pessoa de seu Diretor, Prof. Edman Altheman.

Sunday, July 10, 2011

Chol Hamoed Pessach

Um menininho no circo pergunta ao pai: “Por que o homem que está sobre a corda segura aquela vara?” “Seu bobinho, é a vara do equilibrista. É nela que ele se firma.” “Mas papai, e se ele a soltar?” “Seu bobinho, eu já lhe disse, ele não vai soltá-la, está apoiado nela com toda a força!”. Essa é uma anedota que conta Victor Klemperer. Ela retrata a necessidade de nos apoiarmos em uma vara para nos mantermos livres. Qual é a nossa vara? Qual é a sua vara? Qual é a minha vara? A minha e a sua são a mesma ou cada um tem a sua? E se cada um tem a sua, são elas iguais ou diferentes? Essas questões parecem sem importância, mas não é bem assim.

Em Pessach nós celebramos a liberdade. Realizamos o Seder de Pessach, curiosa expressão, mas não errônea, pois efetivamente devemos seguir uma ordem certa para aquela celebração. Portanto, não podemos escolher como celebrar a nossa liberdade, não somos livres para tal escolha, senão que há uma ordem certa, um seder. Não é ‘se der’ é ‘seder’! Tem que dar, que dar certo.

Toda essa preocupação com a ordem não é simplesmente uma forma de unificar as celebrações de uma festa em todo o mundo, em Israel e na diáspora. O objetivo é outro: ajudar-nos a lembrar que fomos escravos no Egito. Que a liberdade não é algo que é, mas algo que se conquista, que se cultiva, que se pensa, que se quer, pela qual se opta. Que não devemos nos acomodar, achar que tudo está bem. Não, nada nunca está bem, pois sempre pode ficar mal. É por isso que precisamos da vara, daquele instrumento que nos permite andarmos em equilíbrio pela frágil e oscilante linha da vida. Victor Klemperer atravessou os anos do nazismo na Alemanha equilibrando-se no seu diário,que, diz ele, era sua vara de equilibrista. Graças a ela ele se impôs uma motivação: observar, estudar, gravar na memória o que estava acontecendo naquele momento, pois no amanhã as coisas já não seriam assim, ele mesmo as perceberia de outra maneira; por isso precisava guardar aquele momento na memória, perceber como as coisas aconteciam e influenciavam o agora.

Nós também escrevemos nosso diário, mas de outra forma. O paradoxal e muito interessante é que escrevemos sem escrever. Isso porque estamos de certa forma livres. Escrevemos, portanto, não pela escritura, mas pela leitura. Nós todos que aqui estamos lendo e discutindo a Torá e a passagem de Pessach estamos escrevendo nossos diários. Mas às vezes essa escritura⁄leitura ou melhor leitura⁄escritura não é suficiente. É preciso não se contentar com a simples leitura, principalmente quando esta é individual, não coletiva. Precisamos também pensar e nos manifestar.

Por isso, a celebração da liberdade, para ser realmente uma festa judaica, deve encontrar na sua não celebração a sua realização. Parece uma contradição, mas não é. Trata-se apenas de mais uma drashá minha. Quando celebramos a liberdade, na forma do Seder de Pessach, estamos apenas escrevendo um livro, que de nada serve se não o lermos. Aqui eu devo explicar com mais cuidado: 1) a celebração da liberdade é feita através de uma leitura, o Seder de Pessach; 2) no entanto, ao fazermos essa leitura, na verdade estamos escrevendo, pois um livro só é escrito quando é lido; 3) mas ao estarmos escrevendo esse livro, através da sua leitura, o seu resultado é um livro cuja realização só é possível através de sua leitura, mais uma vez uma leitura⁄escritura.

Em suma, a questão da escravidão não está resolvida pela mera celebração da liberdade. Nossa situação é sempre frágil, principalmente na diáspora. O relatório da Comissão de Peritos da Organização Internacional do Trabalho sobre a Aplicação das Convenções e Recomendações Internacionais do Trabalho de 2010 contém comentários relativamente às duas convenções sobre trabalho forçado para respectivamente 36 e 31 países. Em outras palavras, a questão da liberdade é mais atual do que nunca e não basta o livro nem a sua celebração. É preciso muito mais. Que liberdade é essa que celebramos se nos recusamos a liberdade de enfrentar a sua negação. A questão do trabalho forçado é apenas um exemplo, que se coaduna com a história do povo hebreu escravo do Faraó, na forma do trabalho que torna escravo. Mas há todas as formas de escravidão que nos ameaçam, seja quando um jornal é censurado, seja quando se vende sob o nome de ‘plano nacional de direitos humanos’ o claro propósito de cercear direitos. Esse é o mundo em que vivemos, que por muito pouco pode ameaçar-nos efetivamente na nossa liberdade.

Por tanto há duas situações em que se pode celebrar a liberdade: em liberdade ou sem liberdade. Em ambas devemos não apenas celebrar. Nesta semana estive conversando com um cônsul que me ensinou algo: nunca celebre que você conseguiu uma audiência com o presidente ou o ministro. A audiência só existe no passado, nunca no futuro. A celebração só pode ser feita após, nunca antes. No caso da liberdade, a questão é mais complexa, pois mesmo se a celebração só pode ser feita da liberdade conquistada, conquista essa que ocorreu no passado, o seu significado só pode ser para o presente, que por definição é sempre futuro.

Neste Shabat estamos naquela situação peculiar de Chol Hamoed Pessach. Já celebramos a liberdade, com o Seder de Pessach, mas ainda é Pessach. Não há uma ordem –um seder- de como celebrar a liberdade nestes dias, criando-se assim um espaço de liberdade para celebrarmos a liberdade, de forma livre, e justamente não o fazemos, mas podemos fazê-lo. É paradoxal, pois são dias semi-festivos. Esse espaço de liberdade na festa da liberdade pode ser ilustrada pela aquela história em que o dono do peixe, querendo oferecer-lhe mais liberdade, coloca o aquário na piscina. Após umas incursões pela piscina, o peixe prefere ficar no aquário. O dono pergunta-lhe então se ele não gostou da liberdade, ao que o peixe responde que sim, que ele agora se sente livre para ir e vir quando quiser. Essa é a mesma relação do judeu com a Torá e o mundo. Ser livre é estar livre. Mas se alguém retirar o aquário da piscina, não haverá mais liberdade. Igualmente não haverá liberdade se alguém retirar o peixe do aquário.

Portanto, é importante que o aquário esteja sempre na piscina e que o peixe possa estar no aquário. A liberdade está no poder fazer ou não fazer algo, não no fazer e não fazer. Quando recitamos ‘veshamrú venê Israel et hashabat, laassot et hashabat ledorotan berit olam’ (Os filhos de Israel observarão o Shabat, celebrando-o pelas gerações afora, como numa aliança eterna), não estamos celebrando o passado nem profetizando, mas falando de liberdade, da mesma liberdade que nos permitirá receber a Torá em Shavuot.

É essa liberdade, que não se esgota com a saída dos hebreus do Egito nem com sua celebração ano após ano, que nos incumbe todos os dias, a cada momento, em todos os lugares. Como vemos no relatório da OIT, não há menos a fazer do que a celebrar, mesmo se a celebração é o que nos faz tomar consciência de que devemos agir. (Roberto Bedrikow, 03/04/2010)

Parashá Ki Tetse


Para quem é leitor do Estadão certamente não passou em branco o ‘Fantasma de Sakineh [que] vai pairar sempre sobre nós’ na página A2 desta última quarta-feira. Sakineh é a viúva que a justiça iraniana condenou à morte por apedrejamento pelo crime de adultério. O jornalista e escritor José Nêumanne diz, com sua habitual acuidade, que, cito, ‘De fato, a vida de Sakineh Ashtiani é um bem precioso, tão respeitado pelas religiões antigas que floresceram no Oriente Médio ... que os judeus não permitem o sepultamento de quem a elimina com a próprias mãos no mesmo território sagrado onde repousam os restos mortais daqueles que Javé convocou a seu convívio.” Fim de citação.

Mas será que a vida é assim um bem tão precioso no judaísmo, ou somos nós que o afirmamos. E será que o que é precioso é o que lemos na Torá ou o que afirmamos que lemos na Torá? Voltando ao que escreve Nêumanne, parece-me mais importante outro trecho, onde ele diz que ‘a execução dela é um drama político, e como tal deve ser tratado. ... Salvar-lhe a vida não se limita a um gesto de caridade religiosa, mas passa a ser uma obrigação de cidadania. Pois os que se arvoram em seus carrascos atuam no pressuposto de que têm sobre ela direitos de vida e de morte sob o pretexto de hábitos ancestrais que não condizem com as regras civilizadas que regem hoje a pacífica convivência entre seres humanos soberanos e iguais perante Deus e a lei dos homens. A presunção absurda de que uma viúva possa ter cometido adultério e a exigência de reparação ao dever de ser fiel a um parceiro extinto vão na contramão do mais luminoso avanço do século 20, que lança luz sobre seus porões sombrios: o da conquista pelos seres humanos do gênero feminino da igualdade em relação às pessoas do sexo masculino. ... Só pode ser verdadeira e integralmente livre quem empregar seu empenho e seu engenho na garantia de que a liberdade individual sempre deve prevalecer sobre quaisquer outros valores, menos o da vida, servindo a autoridade legítima, constituída no Estado democrático de Direito, fundamentalmente, para impedir qualquer abuso de seu emprego, na medida em que este prejudique o livre-arbítrio do próximo. Quanto mais livres forem todos, mais livre alguém será.”

Após essa leitura, certo a priori acompanha a leitura da parashá Ki Tetse. Com certeza prezamos a vida, não consideramos que temos direitos de vida e morte sob pretextos de hábitos ancestrais, não discriminamos as mulheres e reconhecemos que à lei da força se sobrepõe a força da lei. Mas nosso texto fundamental não diz exatamente isso e, infelizmente, não podemos excluir que, independente de onde e de quando, haverá pessoas que compreenderão a Torá literalmente. Portanto, elas não dirão “está escrito na Torá que”, senão que irão afirmar sem hesitar que a Torá diz que “E o apedrejarão todos os homens da sua cidade e morrerá” quando estiverem estudando o que se deve fazer com o filho contumaz e rebelde. Mas e o que eu acho ou o que cada um de vocês acha dessa punição, isso não conta? Na verdade a autoridade do texto continua prevalecendo, e nós não a contestamos por duas razões: a primeira é que não vemos isso acontecer no seio do povo de Israel; a segunda é que somos reconfortados com o argumento de que isso nunca foi feito e que os rabinos já encontraram uma explicação para que isso tenha se tornado letra morta.

Mas será que a letra está mesmo morta? Toda lei é a sua letra e o seu espírito, de sorte que é no espírito da lei onde podemos nos amparar. E qual é o espírito da Torá? Logicamente é o espírito de Deus, que, por conseguinte, está além de nossa plena compreensão. Por isso avançamos com nossa parcela divina de razão. Não, não está dito na Torá que devemos apedrejar, está apenas escrito. Quem disse que o que está escrito é a Lei? Se alguém disse, esse alguém está falando de outro sistema, não do judaísmo, nem mesmo do Direito. O judaísmo se preocupa com a vida. É por isso que a Torá nos diz, como exemplo nesta parashá, que quando edificamos uma casa nova devemos fazer um parapeito [Maakê] no telhado, para não pormos culpa de sangue em nossas casas, quando alguém dali cair. Um parapeito de dois côvados, aproximadamente um metro.

Já há muito que eu me interesso por esse parapeito. Já mencionei aqui que se trata de uma medida de prevenção de acidentes das mais antigas, mas cuja menção é em geral esquecida. As construções das pirâmides do Egito têm sido mais requisitadas para as introduções das obras sobre acidentes do trabalho na construção civil. Meu pai, Bernardo Bedrikow, médico do trabalho, me disse uma vez que deveríamos mudar essas introduções históricas para, pelo menos uma vez, incluir essa referência da Torá em lugar da referência egípcia.

Não faz muito tempo que esse meu interesse pelo tal parapeito de dois côvados me ajudou a resolver um problema com um cliente rabino. O problema não era, é bom que fique claro desde o início, o cliente ser um rabino. Mas o caso envolvia um rabino, que era demandado em juízo por um casal que o acusava de ser o culpado de suas desgraças. É que esse casal havia procurado o rabino para saber o que deveriam fazer com o filho contumaz e rebelde que não os escutava, era glutão e beberrão. O casal não tinha o hábito de ler as parashás, contentando-se de ouvir as prédicas do rabino no Cabalat Shabat. Quando ouviram a prédica sobre a parashá Ki Tetse e escutaram o rabino mencionar que a Torá preconizava o apedrejamento dos filhos rebeldes, mas que isso não se fazia, nem fora o caso na antiguidade, eles pediram uma audiência com o rabino para saber o que, então, deveriam fazer com o filho. O rabino sabia o que não deveriam fazer, mas, pelo que entendi, ele não havia encontrado nenhuma resposta sobre o que deveriam fazer. Então ele pediu um prazo para dar a sua resposta. Infelizmente pouco tempo depois dessa audiência com o rabino o jovem viria a cometer suicídio. A causa de pedir era a omissão rabínica. Por que o rabino não havia respondido, pelo menos para recomendar uma atitude severa, na linha do que seria um apedrejamento moral? O casal alegava que o despreparo do rabino era uma causa direta e sine qua non do triste desfecho. O casal estava representado pelo temível causídico Dr. Gamal Eki.

É aqui que o parapeito me evitou tropeçar no vazio da arguição embasada na tese de que não havia prova alguma de que uma resposta, qualquer que fosse, pudesse alterar o curso dos eventos. Eu preferi sustentar que a omissão não tinha sido de meu cliente, o rabino, senão que de seus mestres, que durante pelo menos dois mil anos não haviam debatido corretamente, não a questão do apedrejamento em si, mas a do parapeito, debate este que teria possibilitado entender aquele outro conceito. Portanto, não podia meu cliente estar mais preparado quanto a essa questão, pois o cursus das yeshivot não tratava tradicionalmente a questão sob outra a perspectiva senão do não apedrejamento, sem qualquer preocupação com a educação dos filhos rebeldes e contumazes. E meu cliente não podia ter respondido antes, uma vez que estava envolvido na formulação de uma responsa a uma questão que não havia sido formulada nesses termos em dois mil anos.

E qual foi essa responsa, isso é o que nos interessa nesta drashá. Para saber como evoluiu o processo, os interessados podem ler as 10 mil páginas dos autos. Meu cliente raciocinou da seguinte forma: é verdade que está explicitamente escrito na Torá que se deve apedrejar. Mas também é verdade que não é isso o que fazemos, o que nos reconforta. Mas a razão para não apedrejar está igualmente escrita nessa parashá quando diz “farás um parapeito [Maakê] no teu telhado, para que não ponhas culpa de sangue em tua casa, quando alguém dali cair”. A tua casa é a casa onde está a Torá e o teu telhado é a construção que fazemos para protegê-la, ou seja, a Halachá. Mas o que pode então fazer alguém cair do telhado dessa casa e morrer? A resposta é: subir no telhado, portanto no ponto mais alto da casa, sem construir um parapeito de dois côvados. É esse parapeito que nos protege do telhado, ou seja da Halachá!

Em outras palavras, quando alguém disser que a Halachá é o que está escrito na Torá ao invés de ser o que diz a Torá, poderemos estar prestes a cair e morrer. A única forma de evitarmos isso é construindo um parapeito de humanidade onde esta faz com que possamos ler o que está dito e não o que está escrito. E pode até ser que nossos mestres do Talmude já sabiam disso quando afirmaram que o parapeito deve ter dois côvados, um para a lei escrita e outro para a oral.

E dessa forma tratei apenas de um dos muitos trechos da parashá Ki Tetse, sem desmerecer os demais, que não são menos importantes nem desafiadores. Espero que a escolha que fiz –sem outra justificativa que a causídica- não tenha sido frustrante.

Para terminar, não se esqueçam de que se o gato ou alguém subir no telhado, só precisam se preocupar se não houver parapeito. (Roberto Bedrikow, 21 de agosto de 2010)

O "ENE", O "NÃO" E A NEGAÇÃO

Escrevi na revista Língua Portuguesa um artigo sobre a negação, que foi publicado com o título "As letras que fazem não". As ilustrações que eu gostaria que tivessem sido incluídas, mostrando claramente os trechos aos quais me referia, não foram usados na diagramação, mas o resultado final permite, assim mesmo, entender a minha tese. Não sou especialista em língua portuguesa, sendo que o objetivo foi o de trazer à tona, em uma linguagem não ficcional (diferentemente da utilizada para tratar desse assunto no meu livro "O Código David"), uma tese pessoal, sem mais embasamento do que o que explicitei. O texto pode ser encontrado diagramado na edição n° 68 da Revista Língua Portuguesa - "As letras que fazem "não"". Abaixo o texto original.


O ‘ENE’, O ‘NÃO’ E A NEGAÇÃO

Uma simples análise comparativa em diversas línguas permite verificar que existe uma correlação entre a negação e a letra ‘ene’. Colhendo apenas alguns exemplos da negação em uma amostra representativa das línguas indo-europeias, podemos identificar, além dos nossos ‘não’, ‘nem’, ‘nunca’, ‘nada’, inúmeras formas que empregam a letra ‘ene’. Em inglês: ‘no’, ‘not’, ‘nor’, ‘neither’, ‘none’ e todos os derivados (‘notwithstanding’, ‘nonetheless’, etc); em italiano: ‘no’, ‘neppure’, ‘nessuno’, ‘niente’, ‘nonostante’; em espanhol: ‘ni’, ‘no’, ‘nunca’; em francês: ‘non’, ‘ne’, ‘ni’; em alemão: ‘nein’, ‘nicht’; em russo ‘niet’; e assim por diante, bastando prosseguir com tal exercício para chegarmos à conclusão de que é através da letra ‘ene’ que se expressa a negação, pelo menos nesse grupo linguístico.

No entanto, é muito mais difícil encontrar uma explicação para essa conclusão ou para essas “coincidências”. Pode ser que a sonoridade ‘n’ seja, por alguma razão morfológica, mais propícia a essa expressão, ou que todas essas formas da negação descendam de uma forma contida em uma língua da qual todas essas demais línguas se originaram. Desde logo vamos excluir o latim, porquanto nosso grupo linguístico é mais amplo, como atestam os exemplos acima de formas germânicas e eslavas. A hipótese que vamos utilizar aqui, e que explicitaremos a seguir, é de certa forma ousada. Primeiro porque não se baseia em uma competência acadêmica –razão pela qual a afirmamos anteriormente apenas na forma de uma ficção. Em seguida porque parte, paradoxalmente, de uma língua em que o simples ‘não’ se diz sem o emprego justamente da letra ‘ene’.

Na verdade, o que passaremos a chamar doravante de “negação pelo ‘ene’” é apenas uma forma da negação, que, contudo, pode não ser uma verdadeira negação. Em outras palavras, o ‘não’ não seria uma verdadeira negação! Mas existe então uma verdadeira negação? Conceitualmente sim, pelo menos quando a consideramos sob determinados prismas. Isso é o que nos propomos demonstrar a seguir.

Em hebraico, ‘não’ se diz (foneticamente) ‘lo’ e se escreve com as letras lamed+alef. O uso destas letras ao invés do ‘ene’ retrata outra forma de pensamento e não de negação, pois, como dissemos acima, há somente uma verdadeira negação. Para prosseguirmos vamos precisar explicar o que significa esse ‘lamed+alef’, mas o faremos de forma simplificada para não extrapolarmos o tema. A letra ‘lamed’ tem a peculiaridade de ser a única que ultrapassa a linha sob a qual estão escritas as letras do alfabeto hebraico. Essa originalidade de ir além do texto, ou “au-delà du verset” na expressão cunhada por Emmanuel Levinas, explica porque ela tem a conotação de estudo e ilustra também o movimento, a direção, a finalidade. Em português poderíamos empregar o ‘para’. Por exemplo, se alguém vai ‘para Jerusalém’, em hebraico ele vai ‘le Yerushalaim’. Se um vinho é ‘kosher para Pessach’ se diz que ele é ‘kosher le Pessach’. Assim, podemos dizer que o ‘lamed’ é corolário de vida, pois vida é movimento. Mas não de vida no mero sentido de estar vivo, senão que no de ter alguma finalidade, intenção, até mesmo valores.

Feitas tais considerações, cabem algumas explicações sobre o ‘alef’, pois é em direção a esta que conduz o ‘lamed’, para juntos formarem o ‘não’ hebraico. A primeira letra do alfabeto hebraico, o ‘alef’, representa, inter alia, a primeira pessoa, o ‘eu’, que em hebraico é ‘ani’. Portanto, o protótipo da negação em hebraico é ir para si mesmo, ao invés do movimento inverso, em direção ao outro. Na verdade o exato oposto é ‘alef-lamed’, que forma a palavra ‘el’, ou seja ‘D’us’ em hebraico. Em suma, voltar-se para si próprio e desconsiderar os demais, a alteridade, traduz o conceito de negação. Isso é lógico, pois ninguém pode viver isolado, sem a sociedade. Quando alguém se fecha ao mundo externo há uma negação, enquanto que abrir-se, ir em direção ao outro, é afirmar-se. Trata-se, no ‘lamed-alef’ (‘lo’), de uma negação concreta, determinada pelo movimento de não consideração de tudo o que não é o sujeito. Nesse sentido é a única negação possível, pois não podemos pensar um ‘não-movimento’, porquanto ao pensarmos já estamos fazendo algo. Por isso a negação como conceito absoluto ultrapassa qualquer forma de compreensão humana. Assim como ocorre com o seu oposto absoluto.

Como ninguém consegue ser totalmente alheio a tudo, o conceito de negação que podemos compreender inclui necessariamente a ideia de movimento –ir na direção do distanciamento, da recusa-, a dinâmica expressa pelo ‘lamed’, mas nunca o ‘não’ absoluto. Se esse é o conceito de negação que estaria na origem da negação expressa pelo ‘lo’ hebraico, ele difere totalmente do conceito, também de certa forma originalmente hebraico, ainda que possivelmente não exclusivamente, que exprimem as formas que empregam o ‘ene’. Nestas, o que verificaremos é que não se trata mais de movimento, mas de ausência. Podendo esta ausência ser tanto no sentido de algo que não existe neste mundo, sem, contudo, ser inexistente, como de algo que existe e que deixou de ocupar um espaço ou que ainda não o ocupou. Em todos os casos, trata-se de uma ausência, não de uma inexistência, pois é suficiente que algo seja negado para que exista, ainda que somente como conceito.A ausência, contrariamente à inexistência, não nega o conceito, como podemos verificar com os pontinhos de etcetera ou a impressão que deixavam no tabuleiro as pedras retiradas.

No livro ‘O nada que existe’, Robert Kaplan explica que ‘É mais provável, portanto, que o círculo vazio grego para o zero tenha vindo da impressão deixada por pedras retiradas de um tabuleiro de cálculo coberto de areia’ e que ‘Quando voltamos ao ambiente indiano encontramos um ponto utilizado para representar a promessa de cumprir uma tarefa não-realizada, mas também para indicar uma lacuna em uma inscrição ou manuscrito: “sunyabindu”, “o ponto que assinala um espaço em branco”.

Essa forma de negação cuja essência decorre do conceito de ausência, que as sociedades indo-europeias acabaram representando pelo zero e pelo ponto, pode ser igualmente encontrada no texto bíblico, na forma de pequenos pontos sobre as letras ou sua representação. A sua função é a de alterar o sentido literal ou o sentido deduzido do texto, trazendo o verdadeiro significado que se encontrava ausente.

Alguns exemplos conhecidos: a) em Gênesis (19,33) a palavra ‘uvekuma’ tem um ponto sobre a letra ‘vav’. Nesse versículo é dito que ‘E fizeram beber a seu pai vinho naquela noite; e veio a maior e dormiu com seu pai, e não o soube (Lot, o pai) em seu deitar, nem em seu levantar (‘uvekuma’). Segunda a tradição, o ponto serve para indicar que se o pai, embriagado, não tinha muita consciência do que estava acontecendo quando sua filha mais velha se deitou, ele sabia perfeitamente o que tinha acontecido quando ela se levantou. Em suma, ele manteve relação sexual com sua filha e teve plena consciência disso quando esta se levantou. Portanto, o ponto sobre a letra ‘vav’ da palavra ‘uvekuma’ (‘e se levantou’) serve para inverter o sentido literal da frase; b) um pouco mais adiante, ainda em Gênesis, a palavra ‘vayeshakeu’ (‘e beijou-o’) está totalmente coberta com pontinhos. Aqui a tradição interpreta que, como sabemos que Esaú detestava seu irmão, poderíamos considerar esse beijo com ironia. Portanto, os pontos servem para indicar que ele beijou Jacó com sinceridade, de coração. Neste caso os pontinhos servem para modificar, não o sentido da palavra, mas o que pensamos que seria esse sentido, em razão de nosso a priori. Então, os pontinhos restabelecem o sentido literal, que seríamos inclinados a desvirtuar; c) em Números (3, 39), a palavra Aarão está totalmente coberta por pontinhos, indicando que Aarão não foi incluído no censo de vinte e dois mil. Neste caso, os pontinhos serviram para excluir do fato relatado a palavra sobre a qual estão colocados.

Esses pontinhos são chamados em hebraico de ‘nekudot’. Interessante, aqui aparece o ‘ene’! No início do versículo 35 (antes da palavra ‘vayehi’ –‘e era’) e no final do versículo 36 (após a palavra ‘Israel’) do capítulo 10 de Números da Bíblia hebraica eles não aparecem, mas a tradição explica que na verdade eles foram apagados e o que restou foram duas letras ‘nun’ (letra do alfabeto hebraico que corresponde à nossa letra ‘ene’), os ‘nunim’ dos espaços brancos entre esses versículos e os que os precedem e os sucedem. Trata-se, portanto, da letra ‘nun’, inicial de ‘nekudot’ (pontos), que visa representar a omissão, a exclusão dos pontinhos, mas que não pode confundir-se com uma letra ‘nun’ do texto bíblico, razão pela qual os ‘nunim’ estão invertidos, como se, em português, escrevêssemos a letra ‘ene’ ao contrário, ou de ponta cabeça, apenas para não confundi-las com letras do texto. É como se essas duas letras ‘nun’ estivessem escritas, mas vistas num espelho. Elas existem, mas ao contrário. Isso é uma afirmação ou uma negação?O que denotam os ‘nekudot’ e os ‘nunim’ é que quando dizemos que não queremos algo ou que não fazemos algo ou que algo não existe, sempre há algo, ao menos conceitualmente, para não se querer, não se fazer ou não existir. Portanto, a letra ‘nun’, que corresponde ao nosso ‘ene’, e o conceito de negação que ela representa no texto bíblico, podem esclarecer um pouco o porque do emprego da letra ‘ene’ como forma da negação em tantas línguas indo-europeias.

Outra questão, mais complexa, é a via pela qual isso teria ocorrido. Basta aqui concluirmos que a negação pelo ‘ene’ é aquela que nunca é absoluta, senão que permanece na esfera do ser humano, que não tem o poder de negar nada em absoluto, pois também não tem o conhecimento absoluto, ausência esta sine qua non deste artigo.

Parashá Chucat

Nesta Drashá cumpriremos o ritual da Vaca Vermelha!

Segundo o Midrash Bamidbar Rabá, o Rei Salomão, considerado o homem mais sábio de toda a Bîblia, teria afirmado: "Eu me dediquei a entender a palavra de Deus e consegui compreender tudo, exceto o ritual da Vaca Vermelha".

Feita essa introdução, posso prosseguir sem qualquer pretensão de querer explicar o fenômeno da Vaca Vermelha e ao mesmo tempo sem qualquer apreensão de querer explicá-lo. Em suma, posso valer-me de todo e qualquer argumento, raciocínio, dedução, inferência, etc.

O Rei Salomão conseguiu compreender tudo, menos o ritual da Vaca Vermelha. Talvez porque não seja possível compreendê-lo. Com certeza porque não podemos compreender Deus na sua totalidade, ou não seria Deus. A onisciência é o próprio de Adonai, não do homem. Por isso era importante que houvesse algo que não pudesse ser compreendido nem mesmo pelo homem mais sábio de toda a Bíblia. Segundo o Talmude, trata-se do ritual da Vaca Vermelha.

Isso pode significar de duas uma: ou a referência à Vaca Vermelha é uma referência a Deus ou, de maneira mais precisa, observando que era a palavra de Deus a que se referia o Rei Salomão, a referência era justamente à palavra não dita ou não dita ainda. Portanto, à palavra que cabe ao homem descobrir, em permanência, recusando os limites do já dito anteriormente.

Mas há uma terceira via, aquela que une essas duas hipóteses, a da referência a Deus e a da referência à palavra não dita ainda, que não é de Deus, mas do homem.

Começarei pela primeira hipótese, Adonai, ou o Tetragrama, para em seguida associá-la à segunda, a palavra dita pelo homem, não porque assim o quero, mas porque há uma tal combinação nesse sentido. Como eu disse no início, esta parashá autorisa todo e qualquer argumento. Melhor ainda se for alinhado com nossa tradição hermenêutica. A hipótese Adonai, ou Tetragrama, nos conduz ao número 26, que guematricamente representa Deus. Essa afirmação não é divina, mas de inspiração divina, pois feita por nossos mestres, os mesmos, entendidos aqui no seu conjunto e não individualmente, que dividiram a Torá em passukim (versículos). Curiosamente, é no versículo (passuk) 26, contado do início da Torá, que Deus faz o homem à sua imagem, segundo a sua semelhança.

Essa é a origem do homem, chamado na Torá de Adam. O elemento "seco" criado por Deus é "eretz", que é a terra que deve produzir ervagem e árvore, com seus frutos, etc. Mas a terra que deve ser cultivada é "adamá". Antes de ser criado (ou mais precisamente, formado), não havia o homem para cultivar a terra ("adamá"): "veadam ain laavod et adama".

Posto que fomos feitos, ainda mais no versículo de número 26, à imagem de Deus, segundo sua semelhança, é o caso de seguirmos conforme sua inspiração. Imagem e semelhança não significa ser igual, mas talvez o seu espelho neste mundo. Deus mudou os nomes de Sarai e Abrão para Sarah e Abrahão dividindo uma letra "yud" (de valor 10) em duas letras "hé" (de valor 5 cada). Em português, coincidentemente, a letra "i" de Sarai se transformou em duas letras "h" para Sarah e Abrahão. Como espelhos de Deus faremos uma operação inversa, juntando duas letras "hé" em uma letra "yud".

As duas letras "hé" com que se terminam as palavras "Pará Adumá" (Vaca Vermelha), ao se deslocarem destas e se unirem, mudando inclusive o seu gênero, as transformam em "Peri Adam". Ao invés de "Peri Etz" (fruto de árvore), como no versículo 29 do Bereshit, temos aqui o "Peri Adam", o fruto do homem. Este é o ritual que devemos realizar, o mais misterioso, difícil e divino dos rituais. Trata-se de um preceito que devemos observar sem discussões; de uma lei denominada Chucat.

E este ritual da Vaca Vermelha, que devemos cumprir sem contestar, é justamente tudo aquilo que está claramente escrito na parashá Chucat, sem contudo precisarmos fazer nada do que ali lemos. O que devemos fazer é talvez o que ali não está escrito, mas prescrito como referência, inspiração. Se procurarmos uma Vaca Vermelha para realizarmos o ritual descrito na Torá poderemos na verdade estar negando nosso Deus, que nos criou para, à sua imagem e semelhança, criarmos nossos próprios frutos ("P'ru Urvu"). Esta injunção para o uso da razão em oposição à Vaca Vermelha literal tem sua origem no próprio início da Torá, onde na primeira palavra, como ensinou-me em Genebra meu moré Samuel Fischer, toda a ordem deste mundo é colocada sob a égide da letra "reish" (cabeça e, portanto, razão), conforme as duas primeiras letras ("beit" e "reish") de Bereshit atestam. Quando em "multiplicai" encontramos o "reish" precedendo o "beit" que contém a criação, o homem acabou de ser feito e por isso pode e deve frutificar.

Por que não é dito apenas "Urvu" ("multiplicai"), mas se precede este de "P'ru" ("frutificai")? Eu diria que é porque a ordem de frutificar diz respeito à frutificação da Torá, que passa pelo ritual da Vaca Vermelha cumprido como o digamos e não como está dito. (Roberto Bedrikow, 30 Sivan 5771 - 02/07/2011)