Para fazer esta drashá recorri a uma fonte externa, não judaica, mas nem por isso "ajudaica". Na verdade eu acho que quanto mais externas ao judaísmo as fontes, mais judaica será a drashá. Esse é um dos paradoxos do judaísmo, penso eu. Concordo que isso soa absurdo e dificilmente sustentável, mas vou explicar. Os textos, as tradições, as leis sobre as quais cabe embasar a drashá serão sempre judaicos, mas as fontes de inspiração, quanto mais abrangentes ou distintas, melhor. É o espaço entre as palavras, o não escrito em oposição ao escrito. Isso fica ainda mais evidente em Pessach. Por exemplo, temos uma ordem precisa na qual deve transcorrer o Seder, mas uma variedade de Hagadot, que, contudo, contam todas a mesma história. É isso que preserva o judaísmo ledor vador, contrariamente ao que pensam ou melhor ao que creem aqueles que se tornaram ou se tornam, a cada dia que passa, mais presos no texto e, por essa razão, mais distantes deste. Portanto, desta vez a minha fonte de inspiração foi a exposição Escher no Centro Cultural Banco do Brasil, no centro da cidade. Recomendo a todos visitá-la. Uma das obras expostas é um cartaz com figuras de pássaros que está sendo colado sobre uma parede. Então vemos parte do cartaz -a maior parte- já desenrolada e a restante sendo ainda desenrolada e colada. Mas o que é extraordinário é que na parte primeiro desenrolada, as figuras já se tornaram pássaros verdadeiros que começam a voar e sair do cartaz. Assim, vemos claramente que à medida em que o cartaz é desenrolado os pássaros vão se libertando, passando de duas dimensões e formas simples e limitadas para a vida em três dimensões em formas mais sofisticadas. Ora, a liberdade que conquistam não está no cartaz, mas na ação de desenrolá-lo, de abri-lo ao mundo externo.
Mutatis mutandis é o que acontece a cada vez que retiramos o Sefer Torá do Aron Hakodesh e o desenrolamos, até podermos ler o que procuramos. Essa ação nos torna livres. De certa forma, as letras ganham asas, passam a ter três dimensões e a adquirir vida. No entanto, há uma diferença -além de muitas outras- entre a obra de Escher e o texto da Torá. Naquela, é o seu criador, Escher, que dá liberdade à sua criação, seus pássaros. Neste, somos nós. A liberdade do texto é a nossa própria liberdade. A não liberdade do texto é a nossa escravidão. Em Pessach o que nós comemoramos não é uma liberdade que Deus teria atribuído ao texto da Torá, mas a liberdade que Ele ele nos concedeu para desenrolá-lo, trazê-lo para a criação de forma livre, se assim escolhermos fazer. Em suma, comemoramos nossa liberdade de escolhermos ser livres. Por isso, mais uma vez, o Seder e as Hagadot. Foi assim que este ano tive a maior alegria possível durante um Seder. Meu filho dizendo "papai, você não sabe. A história é assim. O certo é assim." Não há nada melhor do que o seu filho criticá-lo, mostrando que o que estávamos comemorando não eram aqueles fatos passados da libertação do nosso povo, mas o futuro, que estávamos construindo ali, no presente daquela noite de Seder. Essa é a mensagem de Pessach, a razão de estarmos aqui, eu fazendo esta drashá e vocês gentilmente escutando-me. (Roberto Bedrikow, 23/04/2011)
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