Ontem eu recebi a visita de um cliente novo. Ele chegou dizendo “Estamos a apenas algumas horas do início do 2º Ticun da Virada. Portanto, estamos em plena celebração da festa de Shavuot, festa em que comemoramos a entrega da Torá. Mas o que significa “entrega da Torá? Isso é um bom negócio? Quais os riscos e benefícios?” E assim por diante, fui bombardeado com perguntas. Em determinado momento eu disse a ele que a cada pergunta o potencial de meus honorários estava aumentando significativamente e que, por essa razão, era melhor avançarmos calmamente, por partes, como recomendaria Jack. Logo ficou claro que aquele Ticun ia tomar feições de Lernen de Shavuot.
Curiosamente os cursos de direito não tratam especificamente da entrega da Torá, de maneira que tive que começar do básico. Por exemplo, eu disse a ele que, se fossemos considerar a questão sob a ótica do direito brasileiro, cabia em primeiro lugar examinar se a entrega da Torá era um negócio jurídico válido. Para tanto, expliquei-lhe, seria necessário, por força do art. 104 do Código Civil, que três condições estivessem preenchidas, a saber que houvesse agente capaz, que o objeto fosse lícito, possível, determinado ou determinável e que a forma fosse prescrita ou não defesa em lei. É certo que uma das partes é por definição plenamente capaz, pois não ocorreria a ninguém, e muito menos seria isso admissível no mérito ante qualquer Juízo, ter Adonai por menos que plenamente capaz. Já a outra parte, .... Quem é a outra parte? - indaguei. Ele me disse que pelo que sabia era o povo de Israel, do qual fazia parte, mas que ninguém o havia consultado.
Pesquisando em minha biblioteca pessoal, encontrei comentário pertinente de Alexandre Safran, filho e discípulo de Rabbi Bezalel Zeev Safran, ao qual sucedeu como rabino, tendo sido eleito aos 29 anos grande rabino da Romênia e nomeado grande rabino de Genebra em 1948. Nesse comentário está explicado que nossos textos litúrgicos mencionam que em Shavuot a Torá nos foi ofertada. Não é dito que é quando a recebemos, e que como observa Rabbi Menahem Mendel de Kotsk, cada um de nós a recebe separada e pessoalmente.
Nesse caso surgem várias questões, que tentarei apenas resumir aqui, em razão do pouco tempo à disposição. Em primeiro lugar, como se manifestou a vontade de realizar o negócio? O Código Civil dispõe, em seu art. 107, que a validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir. Ora, se a vontade refere-se justamente à recepção da lei, infere-se que a declaração de vontade é válida independentemente da sua forma, pois ainda não havia sido regulamentada eventual forma para a declaração de vontade. Mas será que o negócio jurídico a ser celebrado requer instrumento público e, na afirmativa, seria a Torá esse instrumento? Ainda mais complexa é a questão de saber se o silêncio de meu cliente, na espécie, pode ser tido por anuência, porquanto a disposição do art. 111 do Código Civil reza literalmente que “O silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária a declaração de vontade expressa”. Ora, nas circunstâncias não seria esse silêncio suficiente? Mas o próprio conceito de silêncio não é definido na lei.
Contudo, no caso que nos ocupa, por se tratar do recebimento da Torá, há uma inversão paradoxal. O silêncio constitui manifestação não de anuência, mas de recusa. É que o Talmud (Avoda Zara, 19, a) esclarece que a Torá que o israelita recebe e adota, que ele cultiva, torna-se sua Torá. Deus lhe cede a Torá. Deve-se considerar como se o homem a tivesse feito. Diz ainda o Talmud (Sanhédrin 99, a, e Tanhuma, ad Tavo, 3) que aquele que aplica a Torá e a realiza verdadeiramente tem o direito de estimar que ele mesmo a redigiu e promulgou no monte Sinai. Portanto, a melhor doutrina ampara o entendimento de que a entrega da Torá, como negócio jurídico autônomo, não se aperfeiçoou no Sinai, senão que depende da tradição, ou seja da entrega efetiva, a qual não pode existir sem o outro a quem entregar nem sem a recepção efetiva da Torá. É que “entrega” implica per se que alguém esteja presente para receber. Não havendo essa presença, existe apenas oferta da Torá. Para explicar melhor, aproximando de situação atual, nossos tribunais já se pronunciaram no sentido de que a transferência da propriedade das coisas, por exemplo de um carro, se opera pela tradição, como se depreende do art. 1.267 do Código Civil que prevê, textualmente, que “a propriedade das coisas não se transfere pelos negócios jurídicos antes da tradição”, sendo que esta consiste na entrega da coisa ao adquirente, com a intenção de lhe transferir a sua propriedade.
Mas será que Adonai declarou que desejava nos transferir a propriedade da Torá? Como vimos acima, a melhor doutrina –que neste caso praticamente se confunde com a melhor jurisprudência, uma vez que aquela nada mais é do que o Talmud- entende que a intenção era efetivamente a transferência da propriedade, já que, repito, citando mais uma vez o Talmud, aquele que aplica a Torá e a realiza verdadeiramente tem o direito de estimar que ele mesmo a redigiu e promulgou no monte Sinai. Tendo em vista que a essa posição pacífica da doutrina podemos acrescentar que o art. 112 do Código Civil dispõe que “nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem”, e o art. 113 que “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”, não há necessidade, em nossa análise, de discutirmos qual a linguagem empregada por Adonai. Sua intenção era nos transferir, a cada membro do povo de Israel, a propriedade da Torá.
Essa forma de entrega da Torá, que se aperfeiçoa no seu recebimento, a cada instante em que é recebida na forma de sua aplicação por cada um, é única e afasta, de maneira original e engenhosa, o problema da representação. Imaginemos que meu cliente desejasse invocar o art. 116 a contrario, para alegar que Moisés ou seus antepassados no Sinai excederam seus poderes, pois, conforme tal dispositivo legal, a manifestação de vontade pelo representante produz efeitos em relação ao representado somente nos limites de seus poderes, sendo que estes não haviam sido definidos por meu cliente. Aliás, meu cliente se revoltou, até certo ponto com razão, com o fato de que não puderam negociar o pacto que lhes foi oferecido por Deus. Na verdade quem negociou foi Moisés, que subiu sozinho e ninguém sabe direito o que ele tramou lá em cima, sabemos apenas qual foi o resultado. Um pacto mal costurado, com muitas obrigações, condições e promessas. Expliquei-lhe que poderíamos efetivamente invalidar o negócio com base nos art. 123, 124, 138 e 139, ante a existência de algumas condições incompreensíveis e erros substanciais, que interessam à natureza do negócio.
Por outro lado, Deus se apresentou de forma tal que poder-se-ia até falar de coação, que o art. 151 reconhece como passível de viciar a declaração de vontade quando é tal que incuta fundado temor de dano iminente e considerável à pessoa, sua família ou seus bens. Alguém, nas condições descritas na Torá, não teria fundado temor vendo o monte Sinai fumegar, uma fumaça subindo e o monte estremecendo, além do aviso que quem ultrapassasse determinada posição morreria? No entanto, pode-se sustentar, do outro lado, que tais eram os usos e costumes naqueles tempos. Meu cliente pensou ainda em invocar o art. 119 para alegar a nulidade do negócio tendo em vista que “é anulável o negócio jurídico concluído pelo representante em conflito de interesses com o representado, se tal fato era ou devia ser do conhecimento de quem com aquele tratou”. Ora, Deus não podia desconhecer que tal representante, Moisés e os antepassados de meu cliente, estavam concluindo negócio conflitante com os interesses deste, pois Deus sabe o que ocorreu, ocorre e ocorrerá. Portanto, já sabia que meu cliente iria desaprovar o negócio 3321 anos mais tarde. Infelizmente já expirou o prazo de decadência para pleitear tal anulação.
Também seria possível entrarmos pela seara da desproporção das prestações, mas como o art. 157, par. 1º, diz que a desproporção das prestações deve ser apreciada segundo os valores vigentes ao tempo em que foi celebrado o negócio jurídico, teríamos problemas para fazer a prova dessa desproporção.
Como é possível ver, já quase esgotamos o tempo que tínhamos à disposição e nem tratamos ainda de saber se o objeto do negócio é lícito, possível, determinado ou determinável. Assim, vamos assumir a hipótese de que é lícito e possível entregar a Torá coletivamente mediante seu aperfeiçoamento pelo recebimento individual de cada um em cada época. Temos ainda que resolver a questão de saber se o que foi e é entregue é determinado ou determinável. É neste ponto que as chances de meu cliente são as maiores, pois, retomando literalmente (com minha tradução) as observações do grande rabino Alexandre Safran, o israelita deve, pelo menos uma vez na sua vida, receber pessoalmente a Torá e a adotar. Ele não deve se contentar da Torá que a tradição e o ensinamento de seus pais e de seus mestres colocam ao seu alcance. Ele é chamado a viver a sua própria revelação. Cada judeu tem a obrigação formal de escrever ele mesmo o seu Sefer Torá, seu Rolo da Torá, ainda que seus pais lhe deixem um, pois é dito “E agora escreva para você esse cântico”. Dessa maneira cada israelita poderá descobrir e realizar sua própria Torá, a estudar e a compreender.
Esse comprometimento individual é, portanto, o que permite definir o Sefer Torá de cada um, de maneira que o negócio jurídico chamado entrega da Torá é válido a cada instante em que cada pessoa, individualmente, a recebe, não pelo silêncio, neste caso não sinônimo de anuência, mas pelos seus atos que manifestam sua vontade de aceitar a Torá que Deus ofereceu coletivamente a Israel. Observem bem que a oferta é coletiva, para o povo, mas que a aceitação é individual, sempre, a cada instante em que cada pessoa aceita receber a Torá. Tendo em vista que a própria realidade de povo é mutável, na medida em que o número de seus integrantes muda, a Torá sempre estará sendo aceita, e para quem a aceitou, essa aceitação ocorre não de uma vez, mas a cada instante em que essa pessoa a recebe efetivamente, na sua vida, escrevendo seu próprio Sefer Torá, como expliquei acima citando o grande rabino Alexandre Safran.
Nada melhor ilustra essa aceitação que a história de Rute, pois além de ter sido primeiro moabita, ela, viúva do filho de Naomi, disse que, vejam bem, acompanharia sua sogra que decidira voltar para Judá. Isso mesmo, ela optou por acompanhar sua sogra. E disse também: “teu povo será meu povo e teu Deus será meu Deus”.
Pensando bem, acho que vou recomendar a meu cliente optar pela conciliação como meio de solução da controvérsia. (Roberto Bedrikow, Shavuot 5769)
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