Sunday, July 10, 2011

Parashá Ki Tetse


Para quem é leitor do Estadão certamente não passou em branco o ‘Fantasma de Sakineh [que] vai pairar sempre sobre nós’ na página A2 desta última quarta-feira. Sakineh é a viúva que a justiça iraniana condenou à morte por apedrejamento pelo crime de adultério. O jornalista e escritor José Nêumanne diz, com sua habitual acuidade, que, cito, ‘De fato, a vida de Sakineh Ashtiani é um bem precioso, tão respeitado pelas religiões antigas que floresceram no Oriente Médio ... que os judeus não permitem o sepultamento de quem a elimina com a próprias mãos no mesmo território sagrado onde repousam os restos mortais daqueles que Javé convocou a seu convívio.” Fim de citação.

Mas será que a vida é assim um bem tão precioso no judaísmo, ou somos nós que o afirmamos. E será que o que é precioso é o que lemos na Torá ou o que afirmamos que lemos na Torá? Voltando ao que escreve Nêumanne, parece-me mais importante outro trecho, onde ele diz que ‘a execução dela é um drama político, e como tal deve ser tratado. ... Salvar-lhe a vida não se limita a um gesto de caridade religiosa, mas passa a ser uma obrigação de cidadania. Pois os que se arvoram em seus carrascos atuam no pressuposto de que têm sobre ela direitos de vida e de morte sob o pretexto de hábitos ancestrais que não condizem com as regras civilizadas que regem hoje a pacífica convivência entre seres humanos soberanos e iguais perante Deus e a lei dos homens. A presunção absurda de que uma viúva possa ter cometido adultério e a exigência de reparação ao dever de ser fiel a um parceiro extinto vão na contramão do mais luminoso avanço do século 20, que lança luz sobre seus porões sombrios: o da conquista pelos seres humanos do gênero feminino da igualdade em relação às pessoas do sexo masculino. ... Só pode ser verdadeira e integralmente livre quem empregar seu empenho e seu engenho na garantia de que a liberdade individual sempre deve prevalecer sobre quaisquer outros valores, menos o da vida, servindo a autoridade legítima, constituída no Estado democrático de Direito, fundamentalmente, para impedir qualquer abuso de seu emprego, na medida em que este prejudique o livre-arbítrio do próximo. Quanto mais livres forem todos, mais livre alguém será.”

Após essa leitura, certo a priori acompanha a leitura da parashá Ki Tetse. Com certeza prezamos a vida, não consideramos que temos direitos de vida e morte sob pretextos de hábitos ancestrais, não discriminamos as mulheres e reconhecemos que à lei da força se sobrepõe a força da lei. Mas nosso texto fundamental não diz exatamente isso e, infelizmente, não podemos excluir que, independente de onde e de quando, haverá pessoas que compreenderão a Torá literalmente. Portanto, elas não dirão “está escrito na Torá que”, senão que irão afirmar sem hesitar que a Torá diz que “E o apedrejarão todos os homens da sua cidade e morrerá” quando estiverem estudando o que se deve fazer com o filho contumaz e rebelde. Mas e o que eu acho ou o que cada um de vocês acha dessa punição, isso não conta? Na verdade a autoridade do texto continua prevalecendo, e nós não a contestamos por duas razões: a primeira é que não vemos isso acontecer no seio do povo de Israel; a segunda é que somos reconfortados com o argumento de que isso nunca foi feito e que os rabinos já encontraram uma explicação para que isso tenha se tornado letra morta.

Mas será que a letra está mesmo morta? Toda lei é a sua letra e o seu espírito, de sorte que é no espírito da lei onde podemos nos amparar. E qual é o espírito da Torá? Logicamente é o espírito de Deus, que, por conseguinte, está além de nossa plena compreensão. Por isso avançamos com nossa parcela divina de razão. Não, não está dito na Torá que devemos apedrejar, está apenas escrito. Quem disse que o que está escrito é a Lei? Se alguém disse, esse alguém está falando de outro sistema, não do judaísmo, nem mesmo do Direito. O judaísmo se preocupa com a vida. É por isso que a Torá nos diz, como exemplo nesta parashá, que quando edificamos uma casa nova devemos fazer um parapeito [Maakê] no telhado, para não pormos culpa de sangue em nossas casas, quando alguém dali cair. Um parapeito de dois côvados, aproximadamente um metro.

Já há muito que eu me interesso por esse parapeito. Já mencionei aqui que se trata de uma medida de prevenção de acidentes das mais antigas, mas cuja menção é em geral esquecida. As construções das pirâmides do Egito têm sido mais requisitadas para as introduções das obras sobre acidentes do trabalho na construção civil. Meu pai, Bernardo Bedrikow, médico do trabalho, me disse uma vez que deveríamos mudar essas introduções históricas para, pelo menos uma vez, incluir essa referência da Torá em lugar da referência egípcia.

Não faz muito tempo que esse meu interesse pelo tal parapeito de dois côvados me ajudou a resolver um problema com um cliente rabino. O problema não era, é bom que fique claro desde o início, o cliente ser um rabino. Mas o caso envolvia um rabino, que era demandado em juízo por um casal que o acusava de ser o culpado de suas desgraças. É que esse casal havia procurado o rabino para saber o que deveriam fazer com o filho contumaz e rebelde que não os escutava, era glutão e beberrão. O casal não tinha o hábito de ler as parashás, contentando-se de ouvir as prédicas do rabino no Cabalat Shabat. Quando ouviram a prédica sobre a parashá Ki Tetse e escutaram o rabino mencionar que a Torá preconizava o apedrejamento dos filhos rebeldes, mas que isso não se fazia, nem fora o caso na antiguidade, eles pediram uma audiência com o rabino para saber o que, então, deveriam fazer com o filho. O rabino sabia o que não deveriam fazer, mas, pelo que entendi, ele não havia encontrado nenhuma resposta sobre o que deveriam fazer. Então ele pediu um prazo para dar a sua resposta. Infelizmente pouco tempo depois dessa audiência com o rabino o jovem viria a cometer suicídio. A causa de pedir era a omissão rabínica. Por que o rabino não havia respondido, pelo menos para recomendar uma atitude severa, na linha do que seria um apedrejamento moral? O casal alegava que o despreparo do rabino era uma causa direta e sine qua non do triste desfecho. O casal estava representado pelo temível causídico Dr. Gamal Eki.

É aqui que o parapeito me evitou tropeçar no vazio da arguição embasada na tese de que não havia prova alguma de que uma resposta, qualquer que fosse, pudesse alterar o curso dos eventos. Eu preferi sustentar que a omissão não tinha sido de meu cliente, o rabino, senão que de seus mestres, que durante pelo menos dois mil anos não haviam debatido corretamente, não a questão do apedrejamento em si, mas a do parapeito, debate este que teria possibilitado entender aquele outro conceito. Portanto, não podia meu cliente estar mais preparado quanto a essa questão, pois o cursus das yeshivot não tratava tradicionalmente a questão sob outra a perspectiva senão do não apedrejamento, sem qualquer preocupação com a educação dos filhos rebeldes e contumazes. E meu cliente não podia ter respondido antes, uma vez que estava envolvido na formulação de uma responsa a uma questão que não havia sido formulada nesses termos em dois mil anos.

E qual foi essa responsa, isso é o que nos interessa nesta drashá. Para saber como evoluiu o processo, os interessados podem ler as 10 mil páginas dos autos. Meu cliente raciocinou da seguinte forma: é verdade que está explicitamente escrito na Torá que se deve apedrejar. Mas também é verdade que não é isso o que fazemos, o que nos reconforta. Mas a razão para não apedrejar está igualmente escrita nessa parashá quando diz “farás um parapeito [Maakê] no teu telhado, para que não ponhas culpa de sangue em tua casa, quando alguém dali cair”. A tua casa é a casa onde está a Torá e o teu telhado é a construção que fazemos para protegê-la, ou seja, a Halachá. Mas o que pode então fazer alguém cair do telhado dessa casa e morrer? A resposta é: subir no telhado, portanto no ponto mais alto da casa, sem construir um parapeito de dois côvados. É esse parapeito que nos protege do telhado, ou seja da Halachá!

Em outras palavras, quando alguém disser que a Halachá é o que está escrito na Torá ao invés de ser o que diz a Torá, poderemos estar prestes a cair e morrer. A única forma de evitarmos isso é construindo um parapeito de humanidade onde esta faz com que possamos ler o que está dito e não o que está escrito. E pode até ser que nossos mestres do Talmude já sabiam disso quando afirmaram que o parapeito deve ter dois côvados, um para a lei escrita e outro para a oral.

E dessa forma tratei apenas de um dos muitos trechos da parashá Ki Tetse, sem desmerecer os demais, que não são menos importantes nem desafiadores. Espero que a escolha que fiz –sem outra justificativa que a causídica- não tenha sido frustrante.

Para terminar, não se esqueçam de que se o gato ou alguém subir no telhado, só precisam se preocupar se não houver parapeito. (Roberto Bedrikow, 21 de agosto de 2010)

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