Nesta Drashá cumpriremos o ritual da Vaca Vermelha!
Segundo o Midrash Bamidbar Rabá, o Rei Salomão, considerado o homem mais sábio de toda a Bîblia, teria afirmado: "Eu me dediquei a entender a palavra de Deus e consegui compreender tudo, exceto o ritual da Vaca Vermelha".
Feita essa introdução, posso prosseguir sem qualquer pretensão de querer explicar o fenômeno da Vaca Vermelha e ao mesmo tempo sem qualquer apreensão de querer explicá-lo. Em suma, posso valer-me de todo e qualquer argumento, raciocínio, dedução, inferência, etc.
O Rei Salomão conseguiu compreender tudo, menos o ritual da Vaca Vermelha. Talvez porque não seja possível compreendê-lo. Com certeza porque não podemos compreender Deus na sua totalidade, ou não seria Deus. A onisciência é o próprio de Adonai, não do homem. Por isso era importante que houvesse algo que não pudesse ser compreendido nem mesmo pelo homem mais sábio de toda a Bíblia. Segundo o Talmude, trata-se do ritual da Vaca Vermelha.
Isso pode significar de duas uma: ou a referência à Vaca Vermelha é uma referência a Deus ou, de maneira mais precisa, observando que era a palavra de Deus a que se referia o Rei Salomão, a referência era justamente à palavra não dita ou não dita ainda. Portanto, à palavra que cabe ao homem descobrir, em permanência, recusando os limites do já dito anteriormente.
Mas há uma terceira via, aquela que une essas duas hipóteses, a da referência a Deus e a da referência à palavra não dita ainda, que não é de Deus, mas do homem.
Começarei pela primeira hipótese, Adonai, ou o Tetragrama, para em seguida associá-la à segunda, a palavra dita pelo homem, não porque assim o quero, mas porque há uma tal combinação nesse sentido. Como eu disse no início, esta parashá autorisa todo e qualquer argumento. Melhor ainda se for alinhado com nossa tradição hermenêutica. A hipótese Adonai, ou Tetragrama, nos conduz ao número 26, que guematricamente representa Deus. Essa afirmação não é divina, mas de inspiração divina, pois feita por nossos mestres, os mesmos, entendidos aqui no seu conjunto e não individualmente, que dividiram a Torá em passukim (versículos). Curiosamente, é no versículo (passuk) 26, contado do início da Torá, que Deus faz o homem à sua imagem, segundo a sua semelhança.
Essa é a origem do homem, chamado na Torá de Adam. O elemento "seco" criado por Deus é "eretz", que é a terra que deve produzir ervagem e árvore, com seus frutos, etc. Mas a terra que deve ser cultivada é "adamá". Antes de ser criado (ou mais precisamente, formado), não havia o homem para cultivar a terra ("adamá"): "veadam ain laavod et adama".
Posto que fomos feitos, ainda mais no versículo de número 26, à imagem de Deus, segundo sua semelhança, é o caso de seguirmos conforme sua inspiração. Imagem e semelhança não significa ser igual, mas talvez o seu espelho neste mundo. Deus mudou os nomes de Sarai e Abrão para Sarah e Abrahão dividindo uma letra "yud" (de valor 10) em duas letras "hé" (de valor 5 cada). Em português, coincidentemente, a letra "i" de Sarai se transformou em duas letras "h" para Sarah e Abrahão. Como espelhos de Deus faremos uma operação inversa, juntando duas letras "hé" em uma letra "yud".
As duas letras "hé" com que se terminam as palavras "Pará Adumá" (Vaca Vermelha), ao se deslocarem destas e se unirem, mudando inclusive o seu gênero, as transformam em "Peri Adam". Ao invés de "Peri Etz" (fruto de árvore), como no versículo 29 do Bereshit, temos aqui o "Peri Adam", o fruto do homem. Este é o ritual que devemos realizar, o mais misterioso, difícil e divino dos rituais. Trata-se de um preceito que devemos observar sem discussões; de uma lei denominada Chucat.
E este ritual da Vaca Vermelha, que devemos cumprir sem contestar, é justamente tudo aquilo que está claramente escrito na parashá Chucat, sem contudo precisarmos fazer nada do que ali lemos. O que devemos fazer é talvez o que ali não está escrito, mas prescrito como referência, inspiração. Se procurarmos uma Vaca Vermelha para realizarmos o ritual descrito na Torá poderemos na verdade estar negando nosso Deus, que nos criou para, à sua imagem e semelhança, criarmos nossos próprios frutos ("P'ru Urvu"). Esta injunção para o uso da razão em oposição à Vaca Vermelha literal tem sua origem no próprio início da Torá, onde na primeira palavra, como ensinou-me em Genebra meu moré Samuel Fischer, toda a ordem deste mundo é colocada sob a égide da letra "reish" (cabeça e, portanto, razão), conforme as duas primeiras letras ("beit" e "reish") de Bereshit atestam. Quando em "multiplicai" encontramos o "reish" precedendo o "beit" que contém a criação, o homem acabou de ser feito e por isso pode e deve frutificar.
Por que não é dito apenas "Urvu" ("multiplicai"), mas se precede este de "P'ru" ("frutificai")? Eu diria que é porque a ordem de frutificar diz respeito à frutificação da Torá, que passa pelo ritual da Vaca Vermelha cumprido como o digamos e não como está dito. (Roberto Bedrikow, 30 Sivan 5771 - 02/07/2011)
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