Um menininho no circo pergunta ao pai: “Por que o homem que está sobre a corda segura aquela vara?” “Seu bobinho, é a vara do equilibrista. É nela que ele se firma.” “Mas papai, e se ele a soltar?” “Seu bobinho, eu já lhe disse, ele não vai soltá-la, está apoiado nela com toda a força!”. Essa é uma anedota que conta Victor Klemperer. Ela retrata a necessidade de nos apoiarmos em uma vara para nos mantermos livres. Qual é a nossa vara? Qual é a sua vara? Qual é a minha vara? A minha e a sua são a mesma ou cada um tem a sua? E se cada um tem a sua, são elas iguais ou diferentes? Essas questões parecem sem importância, mas não é bem assim.
Em Pessach nós celebramos a liberdade. Realizamos o Seder de Pessach, curiosa expressão, mas não errônea, pois efetivamente devemos seguir uma ordem certa para aquela celebração. Portanto, não podemos escolher como celebrar a nossa liberdade, não somos livres para tal escolha, senão que há uma ordem certa, um seder. Não é ‘se der’ é ‘seder’! Tem que dar, que dar certo.
Toda essa preocupação com a ordem não é simplesmente uma forma de unificar as celebrações de uma festa em todo o mundo, em Israel e na diáspora. O objetivo é outro: ajudar-nos a lembrar que fomos escravos no Egito. Que a liberdade não é algo que é, mas algo que se conquista, que se cultiva, que se pensa, que se quer, pela qual se opta. Que não devemos nos acomodar, achar que tudo está bem. Não, nada nunca está bem, pois sempre pode ficar mal. É por isso que precisamos da vara, daquele instrumento que nos permite andarmos em equilíbrio pela frágil e oscilante linha da vida. Victor Klemperer atravessou os anos do nazismo na Alemanha equilibrando-se no seu diário,que, diz ele, era sua vara de equilibrista. Graças a ela ele se impôs uma motivação: observar, estudar, gravar na memória o que estava acontecendo naquele momento, pois no amanhã as coisas já não seriam assim, ele mesmo as perceberia de outra maneira; por isso precisava guardar aquele momento na memória, perceber como as coisas aconteciam e influenciavam o agora.
Nós também escrevemos nosso diário, mas de outra forma. O paradoxal e muito interessante é que escrevemos sem escrever. Isso porque estamos de certa forma livres. Escrevemos, portanto, não pela escritura, mas pela leitura. Nós todos que aqui estamos lendo e discutindo a Torá e a passagem de Pessach estamos escrevendo nossos diários. Mas às vezes essa escritura⁄leitura ou melhor leitura⁄escritura não é suficiente. É preciso não se contentar com a simples leitura, principalmente quando esta é individual, não coletiva. Precisamos também pensar e nos manifestar.
Por isso, a celebração da liberdade, para ser realmente uma festa judaica, deve encontrar na sua não celebração a sua realização. Parece uma contradição, mas não é. Trata-se apenas de mais uma drashá minha. Quando celebramos a liberdade, na forma do Seder de Pessach, estamos apenas escrevendo um livro, que de nada serve se não o lermos. Aqui eu devo explicar com mais cuidado: 1) a celebração da liberdade é feita através de uma leitura, o Seder de Pessach; 2) no entanto, ao fazermos essa leitura, na verdade estamos escrevendo, pois um livro só é escrito quando é lido; 3) mas ao estarmos escrevendo esse livro, através da sua leitura, o seu resultado é um livro cuja realização só é possível através de sua leitura, mais uma vez uma leitura⁄escritura.
Em suma, a questão da escravidão não está resolvida pela mera celebração da liberdade. Nossa situação é sempre frágil, principalmente na diáspora. O relatório da Comissão de Peritos da Organização Internacional do Trabalho sobre a Aplicação das Convenções e Recomendações Internacionais do Trabalho de 2010 contém comentários relativamente às duas convenções sobre trabalho forçado para respectivamente 36 e 31 países. Em outras palavras, a questão da liberdade é mais atual do que nunca e não basta o livro nem a sua celebração. É preciso muito mais. Que liberdade é essa que celebramos se nos recusamos a liberdade de enfrentar a sua negação. A questão do trabalho forçado é apenas um exemplo, que se coaduna com a história do povo hebreu escravo do Faraó, na forma do trabalho que torna escravo. Mas há todas as formas de escravidão que nos ameaçam, seja quando um jornal é censurado, seja quando se vende sob o nome de ‘plano nacional de direitos humanos’ o claro propósito de cercear direitos. Esse é o mundo em que vivemos, que por muito pouco pode ameaçar-nos efetivamente na nossa liberdade.
Por tanto há duas situações em que se pode celebrar a liberdade: em liberdade ou sem liberdade. Em ambas devemos não apenas celebrar. Nesta semana estive conversando com um cônsul que me ensinou algo: nunca celebre que você conseguiu uma audiência com o presidente ou o ministro. A audiência só existe no passado, nunca no futuro. A celebração só pode ser feita após, nunca antes. No caso da liberdade, a questão é mais complexa, pois mesmo se a celebração só pode ser feita da liberdade conquistada, conquista essa que ocorreu no passado, o seu significado só pode ser para o presente, que por definição é sempre futuro.
Neste Shabat estamos naquela situação peculiar de Chol Hamoed Pessach. Já celebramos a liberdade, com o Seder de Pessach, mas ainda é Pessach. Não há uma ordem –um seder- de como celebrar a liberdade nestes dias, criando-se assim um espaço de liberdade para celebrarmos a liberdade, de forma livre, e justamente não o fazemos, mas podemos fazê-lo. É paradoxal, pois são dias semi-festivos. Esse espaço de liberdade na festa da liberdade pode ser ilustrada pela aquela história em que o dono do peixe, querendo oferecer-lhe mais liberdade, coloca o aquário na piscina. Após umas incursões pela piscina, o peixe prefere ficar no aquário. O dono pergunta-lhe então se ele não gostou da liberdade, ao que o peixe responde que sim, que ele agora se sente livre para ir e vir quando quiser. Essa é a mesma relação do judeu com a Torá e o mundo. Ser livre é estar livre. Mas se alguém retirar o aquário da piscina, não haverá mais liberdade. Igualmente não haverá liberdade se alguém retirar o peixe do aquário.
Portanto, é importante que o aquário esteja sempre na piscina e que o peixe possa estar no aquário. A liberdade está no poder fazer ou não fazer algo, não no fazer e não fazer. Quando recitamos ‘veshamrú venê Israel et hashabat, laassot et hashabat ledorotan berit olam’ (Os filhos de Israel observarão o Shabat, celebrando-o pelas gerações afora, como numa aliança eterna), não estamos celebrando o passado nem profetizando, mas falando de liberdade, da mesma liberdade que nos permitirá receber a Torá em Shavuot.
É essa liberdade, que não se esgota com a saída dos hebreus do Egito nem com sua celebração ano após ano, que nos incumbe todos os dias, a cada momento, em todos os lugares. Como vemos no relatório da OIT, não há menos a fazer do que a celebrar, mesmo se a celebração é o que nos faz tomar consciência de que devemos agir. (Roberto Bedrikow, 03/04/2010)
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